A ISENÇÃO DE ITD PARA ESPÓLIOS DE SERVIDORES PÚBLICOS NA BAHIA: UM PRIVILÉGIO INCONSTITUCIONAL?

Por: Douglas Victore Simões

No cenário atual de busca por maior equidade fiscal e eficiência na arrecadação pública, discutir isenções tributárias se tornou imperativo.

Contudo, uma norma vigente na Bahia chama a atenção justamente por ir na contramão desse movimento: a isenção do Imposto sobre Transmissão “Causa Mortis” e Doação de Quaisquer Bens ou Direitos (ITD) para espólios de servidores públicos estaduais, prevista no artigo 4º, inciso I, da Lei nº 4.826/1989.

Mas será que esse dispositivo está em conformidade com os princípios constitucionais da isonomia e da capacidade contributiva? Ou estaríamos diante de um benefício seletivo, que perpetua privilégios e compromete a justiça fiscal?

Neste artigo, analisamos criticamente essa isenção à luz da Constituição Federal, da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e das práticas adotadas em outros estados da federação.

1. O QUE DIZ A LEI BAIANA?

A legislação em vigor na Bahia prevê isenção do ITD para a transmissão de um único imóvel pertencente ao espólio de servidores públicos estaduais, desde que os herdeiros (cônjuge ou filhos) não possuam outro imóvel em seu nome.

Em outras palavras, se um servidor público falece e deixa um imóvel residencial como único bem, esse bem pode ser transmitido aos herdeiros sem qualquer incidência de ITD.

À primeira vista, a norma pode parecer razoável, pois protege o patrimônio da família do servidor falecido. No entanto, ao analisá-la sob a ótica dos princípios constitucionais, surgem sérios questionamentos.

2. PRINCÍPIO DA ISONOMIA: TODOS IGUAIS PERANTE A LEGISLAÇÃO TRIBUTÁRIA?

A Constituição Federal, em seu artigo 150, II, veda expressamente tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente, significando que benefícios fiscais devem ter critérios objetivos, e não podem ser concedidos apenas com base na ocupação profissional do contribuinte.

A isenção prevista na legislação baiana, ao privilegiar espólios de servidores públicos estaduais, fere de morte esse princípio, visto que contribuintes em situação idêntica – como herdeiros de pessoas que também possuem um único imóvel e não têm outros bens – são tratados de forma distinta apenas por não pertencerem ao funcionalismo público.

Na prática, herdeiros de um auditor fiscal são isentos, enquanto herdeiros de um contador autônomo da rede privada, nas mesmas condições, são tributados.

Onde está a isonomia? 

3. CAPACIDADE CONTRIBUTIVA E JUSTIÇA FISCAL

Outro princípio fundamental, previsto no artigo 145, §1º da Constituição, é o da capacidade contributiva, que estabelece que os tributos devem ser proporcionais à capacidade econômica do contribuinte.

Entretanto, a norma baiana também ignora esse critério, pois mesmo que o imóvel deixado pelo servidor falecido seja de alto valor – e os herdeiros possuam renda elevada –, a isenção se aplica, tratamento que não é dado a contribuintes com menor capacidade econômica, mas fora da esfera do funcionalismo público.

Além disso, o ITD é um tributo com função redistributiva, que busca equilibrar a concentração patrimonial ao tributar heranças e doações. Ao abrir mão dessa tributação – sem considerar a real condição econômica dos herdeiros –, o Estado indubitavelmente desvirtua essa finalidade.

4. E O QUE DIZEM OS OUTROS ESTADOS?

Uma análise comparativa evidencia que a Bahia adota uma posição bastante permissiva e, em certo sentido, isolada.

Em São Paulo, por exemplo, a isenção do ITCMD é restrita a imóveis de valor reduzido, desde que seja o único bem e que os herdeiros não tenham outros imóveis. O critério é objetivo: valor e situação de vulnerabilidade.

No Rio de Janeiro, há isenções específicas para herdeiros de policiais e agentes públicos mortos em serviço, o que se justifica pelo risco inerente à atividade e pela situação de vulnerabilidade dos dependentes.

Já na Bahia, o benefício é amplo e irrestrito: basta que o imóvel pertença ao espólio de um servidor público estadual, ainda que este tenha sido proprietário de um imóvel de luxo e os herdeiros sejam plenamente capazes de arcar com os custos da tributação.

5. O QUE DIZ O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL?

O STF já enfrentou temas semelhantes em diversos julgados. Em decisões como as das ADIs nº 3.334 e 4.276, a Corte declarou inconstitucionais isenções fiscais baseadas apenas na ocupação profissional, sem qualquer critério de necessidade ou risco, entendendo que a concessão de benefícios deve sempre observar os princípios da razoabilidade, proporcionalidade, isonomia e capacidade contributiva.

Em outras palavras: a lei baiana, ao conceder isenção sem critérios objetivos e apenas com base no cargo exercido em vida pelo falecido, é incompatível com a jurisprudência da Corte.

6. E QUANTO AO IMPACTO FINANCEIRO?

É verdade que, proporcionalmente, o ITD representa uma pequena parcela da arrecadação estadual, visto que em 2023, o tributo arrecadou cerca de R$ 302 milhões na Bahia, menos de 1% da receita tributária estadual, sendo estimado que a eliminação da isenção geraria um acréscimo de aproximadamente R$ 5,8 milhões.

Em termos absolutos, esse valor pode parecer pequeno, mas a discussão vai além do aspecto financeiro, pois trata-se de justiça fiscal e da legitimidade do sistema tributário, visto que a percepção de que o Estado concede privilégios injustificados a determinadas categorias corrói a confiança no sistema e reforça desigualdades.

7. CAMINHOS PARA UMA REFORMA JUSTA

O ideal seria que as isenções do ITD na Bahia seguissem critérios objetivos, como valor do bem e situação econômica dos herdeiros, já que benefícios fiscais devem estar voltados à proteção dos mais vulneráveis, e não à manutenção de privilégios históricos.

Há espaço para políticas públicas que assegurem moradia digna a famílias de baixa renda, inclusive as de servidores, entretanto, isso deve ser feito com base em dados e critérios técnicos, e não por distinções corporativas.

8. CONCLUSÃO

A isenção do ITD para espólios de servidores públicos estaduais na Bahia, na forma como está redigida, viola os princípios constitucionais da isonomia e da capacidade contributiva, por instituir um privilégio sem base razoável, desvirtuar a função do tributo e enfraquecer o ideal de justiça fiscal.

A revisão dessa norma é não apenas desejável, mas necessária, vez que o ordenamento jurídico pátrio exige um sistema tributário mais justo, transparente e comprometido com a equidade.

Que o exemplo da Bahia sirva como ponto de reflexão para construirmos, coletivamente, um país mais igualitário – sobretudo no campo tributário.

9. REFERÊNCIAS

BAHIA. Lei nº 4826, de 21 de dezembro de 1989. Dispõe sobre a isenção do ITD para espólios de servidores públicos estaduais. Disponível em: http://mbusca.sefaz.ba.gov.br/DITRI/leis/leis_estaduais/legest_1989_4826_lei_itd.pdf. Acesso em: 14 mai. 2025.

BRASIL. Código Tributário Nacional. Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l5172compilado.htm. Acesso em: 14 mai. 2025.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 14 mai. 2025.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3334/RN, Relator: RICARDO LEWANDOWSKI, Data de Julgamento: 17/03/2011, Tribunal Pleno, Data de Publicação: 05/04/2011. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=621429. Acesso em: 14 mai. 2025.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4276/MT, Relator: LUIZ FUX, Data de Julgamento: 20/08/2014, Tribunal Pleno, Data de Publicação: 18/09/2014. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=6760771. Acesso em: 14 mai. 2025.

CONFAZ. Confaz, 2024. Boletim de Arrecadação dos Tributos Estaduais 2023. Disponível em: https://www.confaz.fazenda.gov.br/boletim-de-arrecadacao-dos-tributos-estaduais. Acesso em: 14 mai. 2025.

RIO DE JANEIRO. Lei nº 7.174 28 de dezembro de 2015. Dispõe sobre o imposto sobre a transmissão causa mortis e doação de quaisquer bens ou direitos (ITD), de competência do estado do Rio de Janeiro. Disponível em: http://alerjln1.alerj.rj.gov.br/CONTLEI.NSF/c8aa0900025feef6032564ec0060dfff/38c6d405dd5c89fd83257f1f006deb65?OpenDocument. Acesso em: 14 mai. 2025.

SÃO PAULO. Lei nº 10.705, de 28 de dezembro de 2000. Dispõe sobre a instituição do Imposto sobre Transmissão “Causa Mortis” e Doação de Quaisquer Bens ou Direitos – ITCMD. Disponível em: https://www.al.sp.gov.br/repositorio/legislacao/lei/2000/compilacao-lei-10705-28.12.2000.html. Acesso em: 14 mai. 2025.

SEFAZ. Balanço Geral do Estado. Disponível em: https://www.sefaz.ba.gov.br/financas-publicas/balanco-geral-do-estado/. Acesso em: 14 mai. 2025.